domingo, 13 de fevereiro de 2011

Dos mitos : Tríptico dos Barcos ( parte II )

Essa é a última parte da postagem sobre o "Tríptico dos Barcos".
Espero que seja útil para alguém, em algum trabalho ou apenas como conhecimento.
Foi uma tarefa difícil escrever sobre o conto porque não havia muito material disponível na internet ou em livros que eu pudesse consultar. Então, espero mesmo que seja útil pra você ! :)

Dos mitos: Tríptico dos barcos.

II – A CULPA
Na segunda parte do livro, o narrador passa a ser o pai de João Alberto. Ele representa a Direita conservadora. Provavelmente, um homem de posses que poderia ter evitado a ida do filho à Guerra, mas não o fez por convicção de que a África era realmente território Português. Quando João retorna, seu pai nota a diferença em seu semblante, frio e distante, ele parece nem reconhecer a família. A mãe de João Alberto, sem encontrar a quem culpar pelo estado de seu fiulho, culpa o marido por nunca ter sido presente e nunca ter dado o exemplo, nunca lhe ter sido amigo ou mestre.

“(...) O nosso primeiro-ministro de então olhava e expressamente para mim, atingindo-me nos olhos e nos ossos, com a dignidade de quem me apontasse um dedo em ferida e me estivesse pedindo contas acerca da educação do meu próprio filho. (...) Começava, sem que eu alguma vez o tivesse suspeitado, a pertencer também à geração daqueles que viriam a trair a família, a historia, a superior ideia da minha pátria...” (pág. 130)

“– Pai – disse-me ele então – eu não quero que me mandem a fazer, a ir
sujar-me com o lixo e a vergonha daquelas guerras.” (pág. 131)

João Alberto ainda na adolescência demonstrava ter pensamentos contrários ao sistema vigente. Gostava de bandas jovens, convivia com “revolucionários” e todos notavam, mas o pai era ausente e nem parecia perceber o filho. O pai, nesta obra, representa o apoio ao regime Estado Novo e ao mito do “Orgulhosamente sós”. Quando ele diz que o filho faz parte daqueles que traíram o país é, possivelmente, uma referência à Revolução dos Cravos :
No dia 25 de Abril de 1974 houve um golpe militar em Portugal, que iniciou um processo de implantação de um regime democrático com uma nova Constituição em 25 de Abril de 1976 e a deportação de Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar. Esse golpe, foi executado por militares das Forças Armadas Portuguesas, em sua maioria capitães, mas era uma nova geração de oficiais formada nas guerras na África , que sabia a agir com autonomia, apesar de não tão organizados como podemos ver no filme Capitães de Abril (Maria de Medeiros, 2000), mas o golpe foi bem sucedido sem o derramamento de sangue e o apoio da maior parte da população. Quando saíram às ruas os militares queriam resgatar o prestígio das Forças Armadas, o fim da ditadura e o fim da Guerra Colonial na África, que já estava praticamente vencida pelos guerrilheiros africanos e Portugal à essa altura já gastava muito mais do que podia, parar manter aproximadamente 2.000 homens em combate.

“Calhou-me pois a parte do ódio e da indiferença dele: as suas maldições. Perdeu-se tanto de mim, este filho, como eu vi perder-se e em muitos males afundar-se, e sem remédio desmoronar-se, o Portugal do século e de cada um dos meus antigos sonhos. É uma perda em duplo, e duplamente irrecuperável – à qual se junta agora esta metade adormecida e inútil do meu corpo. Os homens do meu tempo trazem tolhida e inerte uma parte do corpo: aquela onde lhes nasceram as razões e das quais lhes nasceu também o coração. São homens desterrados do próprio corpo, e também da história e do nome e da geografia do seu país. Vivem como que empalhados entre os destroços, entre a terra que escorre da erosão, e entre as tábuas que deslizam no mar do ultimo naufrágio do século e dos seus barcos. Do pais que tiveram, restam o feno entranhado no cabelo, as aranhas moribundas, as memórias de uma passado que se debate, ainda que no limite das suas forças, para conseguir chegar à costa e afundar a âncora na primeira pedra.” (p. 135)

Novamente, vemos a certeza de que as colônias eram uma perda irreparável, mais que financeira, era uma perda territorial e uma ferida no orgulho português. Os homens mais antigos , da época da Guerra, se sentem desterrados, resta a melancolia e a dor de ter um país mutilado.
Em idade avançada , ele repensa sua vida e sente culpa por nunca o ter ensinado ao filho o modo certo de ver o país, de tê-lo deixado livre para escolher sua corrente de pensamento, nunca tê-lo repreendido pelo cabelo cumprido e pelas músicas que ouvia, mas acima de tudo, sua culpa é a de ver o filho como um morto-vivo derrotado pela guerra, coisa que ele poderia ter evitado, pois tinha posição suficiente para poupá-lo.

“A dor foi terem-me levado o respeito e a alegria do meu filho. Foi terem-me roubado a idade, a beleza e a lucidez da minha mulher. Foi ver saqueada e naufragada e à deriva, e partidos o governo e o leme, e desfeita a vela que eu pus a orçar, vogando nos mares da prosperidade, a minha empresa. (...) Doem-me o filho da guerra e império português vendido pelos trinta dinheiros de Judas. (...) Se bem repararem, em tudo estou à imagem e semelhança do meu país: arrasto-me pela casa que já foi minha martelando o soalho e as escadas com o apoio de uma bengala.(...) Tudo se aprende e tudo se esquece. E é entre esses dois verbos que todos passamos pelo limbo e pela expiação da vida” (pág. 136 - 137)

O arrependimento acomete o pai de João Alberto, pois a guerra levou Portugal à dificuldades financeiras e seu povo ao sofrimento. Ele vê tudo em que acreditava sendo varrido para longe.
Após João Alberto assumir sua empresa com um modo esquerdista de gestão, eles não chegam a ficar pobres , mas a fortuna diminui significativamente. João é um chefe democrático, justo, que não visa só o lucro.
O pai compara seu estado de saúde à Portugal, que dormiu são e acordou torto e paralisado por uma trombose.

Após algum tempo , com a ajuda e a paciência de Patrícia, João Alberto consegue se recuperar.

III – O ESQUECIMENTO
A terceira e última parte dá voz ao filho de João Alberto. Um rapaz de 18 anos, aspirante a escritor.
Há nele o distanciamento político desta nova geração de portugueses e a falta de idealização, a racionalidade e que toma conta dos jovens.

“(...) As ideologias não são mais do que instrumentos secundários de uma afectividade não cumprida, que do amor e da vida se perdeu. Será sempre mal copiada dos livros e das ementas que ensinam a ler e a consumir a educação que se desgasta e se destrói entre pais e filhos. Por mim o penso, o digo e o deixo por escrito: foi por uma questão de estética e política que me fiz de direita.” (p. 137 - 138)

“A casa, comigo a partilhavam o herói empedernido de todas as revoluções que estiveram sempre à beira de libertar o proletariado urbano e o mundo; e uma mãe assustada com o meu futuro – além desses avós eternos que em tempos, vai para muitos anos, quiseram desertar para o Brasil.” (p. 139)

O rapaz critica os ideais tanto de seu avô , quanto de seu pai. Ele chega a ridicularizar ambos. Em sua visão, o avô defendia uma guerra sem sentido para manter um império medíocre, vive nos dias de hoje ainda tão cheio de suspiros e melancolia que sufoca o rapaz e seuu pai apenas tentava ser bem visto pelos revolucionários, que de certa forma também falhou neste proposito.
Embora o golpe tenha sido bem sucedido, acabando com a guerra e implantando uma dose de democracia, logo após o 25 de Abril as pessoas que fizeram a revolução foram , algumas, fuziladas, outras simplesmente desapareceram e outras tantas foram aposentadas.
Capitães não tinham patente suficiente para negociar ou governar , então, o governo passou das mãos dos fascistas para as mãos dos militares superiores. E as mesmas famílias que estavam no poder, ainda continuaram após os militares de alta patente assumir.
Pai e avô, ambos fanáticos por ideologias que os cegavam. Ideologias são sempre mal copiadas dos livros, ou seja, tudo funciona na teoria, mas os homens sempre serão dominados por suas ideologias em vez de dominá-las.

“Dizem eles que lhes roubei o totem da tribo. O meu pai, que me mirava todas as manhãs com o desprezo dos educadores incrédulos, perguntava-me, às vezes aos berros, quais eram, onde moravam e para que norte apontariam os valores da gente da minha idade. (...) eles, que falharam no amor, no casamento, na religião, na filosofia, nas ideologias, na educação e em tudo o que explica as gerações perante o mundo e a vida, ainda têm a ilusão de que vale a pena ter ideias e sonhos num tempo e num país com este! Não sabem, nunca aprenderam a saber que nenhuma geração desenha antecipadamente o seu destino.” (p. 140)

Ele diz que é de direita apenas para manter a biologia do ódio e da descrença. E que seu filho será de esquerda apenas por ser a lei da vida. O rapaz se considera filho de uma geração fracassada no amor, na guerra, nas ideologias e na educação. Podemos perceber que esse comentário do rapaz se deve ao que ocorreu em Portugal após a Guerra Colonial: houve uma grande onda de divórcios. Os homens traumatizados voltavam totalmente mudados, alguns deixavam de amar suas mulheres, outros as agrediam em surtos psicóticos. A guerra não vitimou apenas homens, mas também as mulheres que ficavam em casa esperando os maridos voltarem. Alguns não voltavam e os que voltavam, era como João Alberto, intimamente marcados pelos horrores vistos, afetando a vida familiar. E assim foi crescendo uma geração dividida.
Então, o jovem e decide sair de casa e se ver bem longe dessas duas gerações e ideologias que nada tem a ver com ele.

“ Não nasci em nenhum dos séculos que deram historia, alma, livros e outras certidões e escrituras a este país que hoje está no vento e no espaço que é longe, fora e a si mesmo contrário e estranho. Desistir do nome. Desnascer. Pôr em duvida a própria ideia de família. Mas buscar-me nas peregrinações do espírito, na vaga de um mar tão intimo como a certeza de um tempo concreto, feito à minha medida, de quando eu ainda era eu...” (p. 138)

“Eles, os velhos, muito mais do que os meus pais, lambem ainda a minha vida; cardam-na com desvelo e com o seu excesso de saliva, como se eu fosse uma cria acabada de parir. Tenho, porém, amigos honestos, e é com eles que gosto de partir nos ventos dançantes que me levam para a noite e para as esquinas brancas de Lisboa. Honestos, em geral combativos e mesmo brigões, ouço-os, vivo-os na encruzilhada deste tempo que me dizem pertencer ao país mais antigo, atormentado e parolo da Europa...” (p. 139)


“Hoje, sou apenas o tribuno dos poetas ilegíveis. Prezo-me disso e do meu ódio a quantos persistirem a escrever sobre ditadura, a guerra colonial, o 25 de Abril, os amores, as mortes, as sofridas e esinteressantes vidinhas de que rezam os livros e as vaidades deles. (...) não posso ser escritor porque eles não nos deixaram grandezas nem glórias; antes de nascermos, morreram as ilusões e os fados: ninguém nos deixou uma epopéia por escrever ou sequer um vento que varresse o lixo deste tempo plano, deste país onde nada de novo acontece ou que valha a pensa deixar escrito.” (p. 144)

O rapaz tenta ser escritor e sofre sua primeira decepção quando mostra seus poemas a professores e estes o censuram, seu pai tentando ajudá-lo, reformula algumas coisas, conserta alguns erros mas, para o rapaz, as "correções" acabam com todo o sentimento daqueles poemas. Seu pai financia a impressão de seus livros, mas estes não obtêm sucesso. A culpa do insucesso de sua tentativa de escrita é colocada na falta de assunto. O que ele iria escrever se tudo que havia para ser feito já foi feito ? Só sobrou para sua geração assistir o envelhecimento daqueles que fizeram a história. O país guarda costumes tão antigos e imutáveis como ele próprio. O rapaz vê o pai e seus amigos, antes revolucionários, cabeludos; hoje calvos, condenarem tudo que acham rebeldia. Antes, defendiam a liberdade e a igualdade entre os sexos, mas hoje ficam apavorados e rancorosos de pensar que suas esposas possam ter essas coisas. Seus avós, antes extremamente patriotas, hoje só se aborrecem pelos remédios para o corpo fatigado e se entediam com as noticias do mundo. Resta apenas a melancolia e o saudosismo para contemplar. Portugal se encontra parado no tempo, nada de novo acontece, só se lamenta o passado.

“Hoje como ontem, é proibido dizer, é proibido acusar. O patriotismo de pacotilha do meu avô projectara-se todo no orgulho de ter feito dele um alferes condecorado por actos de valentia e temeridade nos Dembos, onde então moravam o Diabo, o veneno das víboras, os ferros cirúrgicos da morte.” (p. 145)
“Cidadão do nada, num país cuja história se confunde com o vento que lhe sopra do hálito e do estomago; discípulo dos poucos que me ensinaram as ruas, as horas e as estações do ano em Lisboa. Aquilo que não sei ou não conheço, posso seguramente imaginá-lo, mas só com a ciência que me está no ouvido, e nunca no coração.” (p. 146)

Passados os anos, cada um se lembra apenas daquilo que quer lembrar e aqueles que não viveram precisam se contentar com o que é contato pelos livros e pelos supostos heróis, que se esquecem da história e lembram-se apenas do que lhes é conveniente ou o que suas ideologias permitem. Tornando a história tão parcial que não vale a pena aos da nova geração tomarem partido. Resta apenas esquecer também.

CONCLUSÃO
Sabendo que o autor João de Melo participou da Guerra , este é um livro quase autobiográfico, mas tem muitos elementos do pós-modernismo.
A linguagem é introspectiva e há muitas divagações, é uma trama que desenrola o lado psicológico dos personagens representando três gerações marcados por um único fato. Outra característica que se apresenta no livro é a intertextualidade com poemas e outros fatos históricos. É necessário conhecer o fato histórico, além da simples decodificação para alcançar o real significado do texto.
Na narrativa há uma autoconsciência e auto-reflexão, radicalização de posições, tendo sempre como cerne o questionamento histórico.


Trailer do filme "Capitães de Abril"

2 comentários:

carina paccola disse...

Oi, Gisa, vim conferir seu blog e gostei muito deste Tríptico dos Barcos. Muito legal! Depois vou ler mais coisas! Abraços

Anônimo disse...

Oiii os textos do blog são meus sim! =)
Obrigada!

=*